Coisas e Coisas
UMBERTO ECO (III)[continuação do post de 22 de Abril]
O Radio-corriereExplica o narrador do livro
A misteriosa chama da rainha Loana, romance recente de Umberto Eco, que a
Radio-corriere era uma publicação dedicada à programação de rádio por volta dos anos 1940. Yambo, o narrador, nas suas deambulações para recuperar o tempo esquecido, descobre o velho rádio que existia em sua casa por essa altura: "Era um lindo
Telefunken cor de mogno [...], com o altifalante coberto por um tecido de trama grossa (que talvez servisse para repercutir melhor a voz)" (p. 157).
Mais à frente, reconhece: "O aparelho remontava, assim a olho, aos anos 30. Na época um rádio devia ser caro, e certamente só tinha entrado lá em casa a determinada altura, como símbolo de
status" (p. 158). Então, uma vez por semana "transmitia o concerto de ópera
Martini e Rossi, e noutro dia o teatro. [...] Como é que dizia aquele anúncio? A rádio, a voz que encanta". A revista trazia programas de ópera, comédias, um ou outro concerto sinfónico e notícias (p. 160). Yambo sublinharia alguns desses programas: um estudo, um nocturno, uma sonata (p. 259). Tudo o resto era música ligeira, "ou melódica, como se dizia na altura".
Mas o aparelho de rádio estava irremediavelmente perdido, mesmo mais do que a própria memória de Yambo; esta talvez pudesse regressar. Daí, Giambattista Bodoni usar o gramofone e os velhos discos ligados ao altifalante do rádio.
O regresso do nevoeiro [leia-se: AVC] ou a história do livro perdidoNas suas semanas de reconstituição da infância e da juventude, no sótão físico das memórias, em Solara, aldeia onde a família se refugiara, na altura da guerra, para fugir aos bombardeamentos, Bodoni/Yambo encontra, no fundo de uma caixa, uma encadernação gasta, acomodando um volume seiscentista. Foi logo ver o frontispício:
Mr. William Shakespeare Comedies, Histories, & Tragedies. Retrato de Shakespeare,
printed by Isaac Iaggard. Algumas páginas atrás (p. 242), Sibila - a sua colaboradora da loja de livros antigos que possuía - pusera num catálogo para venda um exemplar dessa obra de 1623. Era o verdadeiro terror: "Para vender o livro, teríamos de mobilizar as grandes casas de leilões, que nos comeriam sabe-se lá que fatia do espólio, e a outra metade iria para o fisco; gostaríamos de ficar com ele, mas não o poderíamos mostrar a ninguém porque, se o boato se espalhasse, teríamos os ladrões de meio mundo à porta de casa [...] Se pensarmos em pô-lo no seguro, ficaremos na miséria. Que fazer? Dá-lo em gestão ao Município, para o colocar, sei lá, numa sala do Castelo dos Sforza, numa vitrine blindada, com quatro gorilas armados a guardá-lo dia e noite".
O in-folio descoberto no sótão era o começo de um novo nevoeiro [certamente a tensão arterial subiu excessivamente, pois a emoção fez-lhe confundir as ideias, enquanto subiam baforadas de calor ao rosto, p. 277]. Mas, desta vez, Yambo parece não perder a memória embora não sinta o corpo e não consiga falar com minguém. Está ali, mas ninguém o ouve. Até que as cores se desvanecem e vem o preto ("Porque é que o Sol se está a tornar negro"?).
A obra, no seu conjunto, é um reflexo sobre labirintos, escadas e passagens secretas (em ambos os livros que analisei aqui no blogue:
A misteriosa chama da rainha Loana,
O nome da rosa), enquadrado em suspense. Em
O nome da rosa, a narrativa decorre num espaço privilegiado da memória física: a biblioteca; no livro agora editado pela Difel, a narrativa decorre no espaço da memória: o cérebro. Em que as conexões do conhecimento - a procura do pensamento, o livro ligado a outro livro - são o centro das histórias: naquele um livro raro de Shakespeare, neste um livro de Aristóteles, quase desconhecido, sobre o riso. Se naquele, há uma relativa raridade de livros e um sentido sagrado dos livros (até porque a acção decorre dentro de um mosteiro), neste, a acção remete para a história recente de um país, a Itália, e para a produção das indústrias culturais, direi: produção profana dos meios de comunicação de massa - banda desenhada, literatura, cinema.
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