Coisas e Coisas


PALAVRAS SUPERLATIVAS

Houve um tempo em que a palavra mercado - como espaço físico de troca, compra e venda de produtos - já não era suficiente para determinar a dimensão esse espaço. Começou a falar-se de supermercado, onde cada tipo de produto era referenciado por marcas. Sou contemporâneo dessa palavra. Se, até aí, o local possível de aquisição de bens de primeira necessidade era um espaço pequeno e havia uma relação interpessoal entre quem vendia e quem comprava, mediado por uma barreira, o balcão, o supermercado alterou a relação de troca. Aboliram-se os balcões e, por vezes, as portas - caso de centros comerciais. Creio que de França veio a palavra hipermercado (aliás, uma marca que chegou a estar implantada no nosso país). Hipermercado é a palavra máxima para designar as superfícies de compra de bens, já não reduzidos a bens de primeira necessidade, mas onde se pode comprar de tudo - livros, gasolina, medicamentos um destes dias.

Claro que, ao lado do tratamento impessoal e onde o cliente pode mexer nas peças ou bens antes de comprar, os bens têm já indicação de preço, em forma electrónica de código de barras (em fim de ciclo, no presente momento), e criam-se nichos dentro do hipermercado, como numa concessão ao antigo armazém: de um lado, há provas (experimenta-se, antes de comprar, assistido por uma jovem apresentadora); por outro lado, há especialistas (caso dos electrodomésticos) que prestam conselhos antes da decisão da aquisição. Como no supermercado, o transporte de bens até à caixa registadora e desta para o parque de automóveis é feito por um carrinho. O supermercado e ainda mais o hipermercado implicam uma geografia de arrabalde ou periferia de centro urbano.

Mais recentemente, fomos enriquecendo o nosso vocabulário com palavras novas. Uma delas foi apagão. Há não muitos anos, Lisboa e uma parte do país ficou, repentinamente, sem energia eléctrica. Causa eventual: uma sobrecarga de utilização. Mas a resposta política foi uma cegonha que fez um curto-circuito e provocou o apagamento. Na realidade, as cegonhas escolhem sítios bem altos para os seus ninhos (torres de igreja, postes eléctricos), mas custa-me a crer que a ave, mesmo com as asas todas abertas tenha uma dimensão superior à distância das linhas eléctricas entre si.

Também surgiu a palavra buzinão. Nos últimos dez a quinze anos houve dois, pelo menos. Tratava-se de uma buzinadela geral em portagens de auto-estrada, protestando contra a sua implantação ou aumento de taxas. Isso surgiu em momentos de forte contestação política. Outra palavra foi calçadão. Ali para os lados de Cascais, junto ao mar, há um passeio comprido onde as pessoas podem passear, correr, andar de bicicleta ou simplesmente conversar, com uns bares e pequenos restaurantes (infelizmente tem estado fechado para obras). Já não é uma calçada, uma rua, um caminho - atingiu um ponto superlativo. Mais recentemente fomos surpreendidos pela palavra arrastão. Para mim, o termo significava barco de pesca maior que a traineira (pesca costeira) e que pode ir até mares profundos à pesca do bacalhau, por exemplo. Ora, o novo arrastão quer dizer movimento de gente no sentido de perturbar a ordem pública (roubando, provocando destruição).

Percebi que a palavra vem do Brasil, como as anteriores. Só que quem reportou esqueceu-se de uma coisa. Hoje, em Portugal, há uma grande comunidade brasileira que procurou o país para trabalhar. Como fala a mesma língua quer ser igual ao falante de cá. Essa legitimidade parece que ficou esquecida quando um jornalista disse: pois, o arrastão foi violento mas nada que se compare com o Brasil. Errado, arrastão já é uma palavra superlativa - e para não ser tão violento como do outro lado do Atlântico convinha construirmos outra palavra. Talvez arrastaozinho (sem til). Ao menos, assumíamos o ridículo da comparação!

[observação: depois de construir esta mensagem, dei a volta por vários blogues (8:47). Manuel Pinto já havia proposto ontem a palavra arrastinho. A minha ideia não é, pois, original. Rendo-me a quem pensou mais depressa]



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