Coisas e Coisas
BILHETE DE IDENTIDADETalvez o dia de hoje, porque chuvoso, tenha contribuido para eu acabar de ler o livro de Maria Filomena Mónica,
Bilhete de identidade, que comprara ontem na livraria da Universidade, com um bom desconto, ainda antes da aula de mestrado, dada ao sábado.
O percurso da família e dela própria lêem-se como se fosse um romance. Claro, há uma espécie de
voyeurismo quando se conhece, com muitos pormenores, a vida de alguém, ainda por cima viva e conhecida socialmente. Paixões e desamores, alheamento ou aproximação dos actos e dos acontecimentos políticos e narrativa da sua evolução académica não me interessaram tanto quanto o relato que vai fazendo do país.
Ela avisa-nos, logo no começo (p. 12), que a sua intenção é "a de tentar perceber, e dar a perceber, uma vida, uma família e um país". Embora saliente que o género biográfico tem tido sucesso em países como o Reino Unido, onde a autora fez o doutoramento, mas não em Portugal, ela reconhece o quanto difícil é esta exposição pública. Dá-nos a história de uma pessoa e da sua família mas retrata também Portugal, à luz de quem o viu por dentro e lá fora. E o registo desapiedado que faz conduziu-me à reflexão, eu que não tenho essa visão de fora do país, dado que nele sempre vivi, exceptuando o período de serviço militar numa antiga colónia africana.
Fixo-me na página 233, onde ela anota o resultado de um inquérito feito quando trabalhava no Centro de Investigação Pedagógica, da Fundação Gulbenkian: "Ao defrontar-me com as respostas ao questionário, logo concluí que a escola não estava a cumprir a sua missão no que dizia respeito à contribuição para a igualdade de oportunidades. Mas não foi isto que mais me espantou, e sim a resposta à pergunta, aberta, sobre a obra mais lida pelos estudantes. No espaço respectivo, aparecia um livro de que eu jamais ouvira falar,
A Rosa do Adro, escrito por Manuel Maria Rodrigues, o qual, após investigação, verifiquei ser um sub-Júlio Dinis. No meu espírito, reforçou-se a ideia de que a sociedade portuguesa era, não só desigualitária, mas bronca".
Um dos temas que a autora aborda ao longo da sua biografia é a da educação universitária, onde estabelece implicitamente comparações entre o Reino Unido e Portugal. Nota-se, contudo, uma alteração nos dois países ao longo do período em que ela é estudante e professora universitária. Algumas regras mudariam, mas o esforço de assistir a seminários, estudar e discutir através de trabalhos de investigação surge muito mais sólido no Reino Unido.
Talvez - repito o início de frase - seja pelo domingo cinzento e dormente, mas do olhar dela parece-me restar uma grande tristeza. As pessoas movem-se em círculos mesquinhos, as mulheres olham para os
tricots. E um alheamento de grande parte de nós face à realidade - quando em Lisboa se discutem problemas políticos pós-1974, ela observa famílias de camponeses fazendo piqueniques à beira de riachos, como se tratasse de um outro país.
E ainda um grande desencanto com o país. Visível também em pessoas que fazem (ou fizeram) parte do seu núcleo mais chegado. Escreve António Barreto (
Público de hoje, p. 9): "A lebre portuguesa, a que corria célere e mais depressa do que os europeus, tem vindo a viver como a da fábula. A perder tempo, a dormir, a entreter-se, a divertir-se e a olhar com desprezo para a tartaruga europeia". E Vasco Pulido Valente (também
Público de hoje, última página), que fala de Mário Soares (como o faria de qualquer outro candidato): "Não há candidato que não queira «dar a sua contribuição» para salvar a Pátria".
Os três - Filomena Mónica, António Barreto e Pulido Valente - são dos pensadores e intelectuais mais lúcidos que leio. Estudaram fora do país (sensivelmente num período em que eu estava no serviço militar) e entusiasmaram-se com o regime começado em 1974. Barreto e Pulido Valente ocuparam até altos cargos políticos na governação. O que os faz ver assim tão de escuro o país? Este, certamente, está da cor do dia de hoje. Ainda restam forças para o revitalizar?
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É óbvio que a historiadora fala...
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