Coisas e Coisas
A VITÓRIA DA TVI NA GUERRA DAS AUDIÊNCIASA nota escrita por Adriano Nobre, na
newsletter Meios e Publicidade do dia 3 deste mês, sintetiza o sucesso da noite de passagem de ano, símbolo do comportamento do ano: "A proposta televisiva da TVI para a noite de fim-de-ano bateu largamente a concorrência da SIC e da RTP1 nas audiências do último serão de 2005. O
Grande Directo que acompanhou o final da segunda edição do
reality show 1.ª Companhia proporcionou à estação de Queluz a liderança do ranking de programas mais vistos no dia 31 de Dezembro, com uma audiência média de 12,2% e um share de 50,4%. Os programas da SIC e da RTP1, por seu turno, quedaram-se pelos 24.º e 25.º lugares desta listagem, obtendo ambos audiências médias de 4,4% e shares de 18,2% e 17,1%, respectivamente. No total dia de 31 de Dezembro, a TVI obteve um share médio de audiências de 33,7%, contra os 26,5% da RTP1 e os 20,8% da SIC".
Tais números esmagadores levariam José Eduardo Moniz, director-geral da TVI, a considerar que a evolução da TVI "é um caso a ser estudado nos manuais de como se faz a recuperação de uma estação" (
Público, 3 de Janeiro). Quando Moniz chegara à estação, em 1998, a TVI tinha uma quota de mercado de 13,1%. Ainda recorrendo ao
Público de 3 deste mês, em artigo assinado por Paulo Miguel Madeira, extram-se as seguintes ideias-chave: 1) SIC perde liderança que tinha há 10 anos, 2) TVI aumenta 1,1% e ganha no horário total e no horário nobre, 3) noticiário das 20:00 da TVI bate o da RTP, 4) subida de 1,4% de share na televisão por cabo, e 5) o canal 2: recupera para níveis de 2003. Já Marina Almeida, no Diário de Notícias, inicia assim o seu texto: "O final da
1ª Companhia e a novela
Morangos com Açúcar - Férias de Natal deram a vitória à TVI no último dia de 2005 e no primeiro dia do Ano Novo, respectivamente".
A minha perspectivaA meu ver, devemos procurar outros elementos que justificam esta vantagem da TVI, na linha do que tenho aqui vindo a explorar. Refiro-me às sinergias (apoio mútuo) entre a televisão (popular, neste caso) e a imprensa cor-de-rosa ou sentimental, dada a identidade comum de públicos-alvo. Espreitemos três publicações editadas esta semana, com rescaldo do final da
1ª Companhia, que são:
Ana,
Maria,
TV 7 Dias, as duas primeiras em formato mais pequeno que a outra (a revista
Caras dedica um grande espaço ao casamento da modelo Figueiras com o futebolista Peixoto, mas em semanas anteriores dedicou atenção ao
reality-show).
As revistas
Ana e
Maria são muito semelhantes, concorrendo para o mesmo alvo, as mulheres de classe C2 e D, muitas delas donas de casa ou jovens adultas com empregos de baixos salários, vivendo na cidade ou em aglomerações urbanas. O que trazem? Notícias das telenovelas, cuidados com pele e saúde, conselhos de ordem sexual ("Você assusta ou atrai os homens?" e "Deixe-o louco de desejo em 2006", na
Maria; "Conheça as vantagens de ser «a outra»", na
Ana), como (sobre)viver com baixos ordenados ("Estique o ordenado até ao fim do mês", na
Maria; "12 medidas para €sticar o ordenado", na
Ana), moda ("Saias e corsários para combinar com tons rosa", na
Ana), culinária, horóscopos e cartas de leitoras.
Sobre a
1ª Companhia, a
Maria dedica cinco páginas, uma delas com texto de Cristina Areia, a vencedora, e a
Ana apenas três páginas, duas das quais sobre a mesma "recruta". Só por esta amostra se percebe qual era a tendência dos media cor-de-rosa e sentimentais (não sei quer a influência das revistas na votação quer também a forma como é feita a votação). A
Maria, com manchete na capa, escreve sobre Ruth Marlene, que passou pelo
reality-show, ocupando duas páginas à cantora. Aí se menciona que ela se tornou mais popular e cobra quase €10 mil euros por espectáculo, "acima dos de Romana, Claudisabel ou Mónica Sintra", "estrelas" do mesmo espaço de Marlene.
Mas voltemos à
1ª Companhia e ao que se publica nas duas revistas. A
Maria traz uma entrevista com Sá Leão,
rapper e produtor de filmes pornográficos, que terá uma "química" com Marlene, a acima referenciada cantora (de um êxito chamado
Pisca-pisca), de modo que os filhos daquele querem saber do grau de profundidade da relação. Também Serginho, "recruta" do mesmo
reality-show e actual guionista da TVI, fala da sua vida e da família. A
Ana assenta em três "recrutas", a vencedora e o par Leão-Marlene. De Areia, até aparece o pai a comentar: "Ela quer comprar uma televisão para a filha e trocar de carro, porque o dela já está velho. O restante dinheiro vai servir para fazer um pé-de-meia" [prémio: €25 mil].
Com temas e discursos assim não é de estranhar a simpatia das leitoras das revistas pela TVI; cada uma delas aspira - mesmo contando com a exposição desagradável em algumas situações - a comprar um carro e, talvez, uma casa. As audiências das revistas contribuem generosamente para as audiências da TVI.
Já a
TV 7 Dias dedica 15 (quinze) páginas ao
reality-show (a revista nem sequer pertence ao grupo Media Capital, mas sim à Impala, detentora também da
Maria). O "capacete de ouro", ganho por Cristina Areia, é a introdução para a afirmação dela em dedicar a vitória à filha, mas também ao pai, comediante, como se lê na publicação. Reflicta-se no que se escreve sobre ela: "Foi nos primeiros momentos de 2006 que Cristina protagonizou a apoteótica entrada nos estúdios. Com direito a fogo de artifício e bailarinas emplumadas, a actriz chegou em delírio". Num pequeno destaque, a revista dá conta de vídeos de retrospectiva do programa com outros parceiros do programa: Júlia Pinheiro, José Pedro de Vasconcelos, Ruth Marlene e Jorge Monte Real.
Convém aqui frisar que o programa entrou pela passagem de ouro, não respeitando a regra do primeiro
Big Brother, cujo vencedor, o ingénuo Zé Maria, foi conhecido antes das doze badaladas. O "esticar" o programa para além da hora clássica de o finalizar mantém a audiência agarrada ao televisor.
Não tem havido discussão sobre temas como os
reality-shows, tirando alguns comentários de Eduardo Cintra Torres no
Público e mais escassos textos sobre televisão editados no
Diário de Notícias. Merecem ser estudadas: a cumplicidade (acima escrevi sinergia) entre televisão popular e revistas de coração, a circulação de "estrelas" tipo (cantores, antigos futebolistas, actores e produtores de filmes pornográficos, ingénuos, figuras habituais de revistas cor-de-rosa, profissionais das artes do espectáculo em fim de carreira) e o papel da animadora [Júlia Pinheiro tem uma bela voz de locução, como o fez durante algum tempo nos programas da manhã da RFM e da Antena 1, mas grita e perde o controlo no
reality-show, "disparando" o conteúdo de uma garrafa de champanhe no final do programa, do mesmo modo que Teresa Guilherme, agora em estilo quase intimista no primeiro dia do ano na SIC].
O sucesso da TVI, que começou nos noticiários protagonizados pela agora afastada Manuela Moura Guedes e nas novelas portuguesas (caso de
Ninguém como tu), prolongou-se nos
reality-shows (
Big Brother,
Quinta das celebridades e
1ª Companhia) e na novela "juvenil"
Morangos com Açúcar, que aposta, entre outras coisas, no entertenimento musical, lançando os
D'ZRT e agora convidando a "boys band"
Anjos para actuação dentro do programa.
Observações finaisPara mim, é claro que a televisão domina e as revistas sentimentais apoiam-se nos programas, criando informação complementar. Apesar de serem meios que atraem audiências elevadas, produzem
universos fechados e auto-referenciais. Quem não tenha visto a
1ª Companhia não percebe a teia de agentes sociais entrevistados e analisados nas publicações. As personagens dos
reality shows são criadas na e para a televisão, havendo necessidade de as consubstanciar nas revistas, para uma maior percepção das telespectadoras (e telespectadores). À recepção do programa, seguem-se as conversas entre o público, numa reconstituição do mesmo.
Por outro lado, e apesar de parecerem não narrativas, os
reality shows têm guiões, e as "surpresas" estão contempladas nesses guiões (livres, como em alguns filmes, que deixam os actores e actrizes com grande liberdade de encenação). Os cortes diários e a condução do apresentador(a) são duas das formas de levarem horas monótonas para picos de atenção. Logo: há
narrativas, como numa série.
Há um evidente sucesso na TVI em termos de gestão. Mas não o há em termos de cultura. O fechamento que anotei acima significa ainda uma ausência de crítica ou conhecimento da realidade. O sonho de ganhar dinheiro para uma televisão ou um carro não nos mostra os problemas e as situações do país. A produção de
reality shows mostra um
mundo neutro e apolítico, em que mesmo os rufias têm bons sentimentos (o Frota dos filmes pornográficos, tornado célebre no nosso país num desses
reality shows, aparece a dar beijos e carinhos no seu filho, numa das revistas acima referenciadas).
A "novela da vida" reflecte um mundo de pequenas estrelas e pequenos oportunistas num pequeno e pobre país, com semi-analfabetos com sonhos de ascensão social e gente que aparece nas revistas para aparecer na televisão para aparecer nas revistas, desempregados ou sem emprego conhecido, numa mistura de
esquema e variações própria das novelas produzidas pela Globo e pela NBP. Aqui, confluem géneros televisivos como comédia e musical, com profissionais em trabalho de intermitência artística (freelancers) e amadores, numa tipologia cinematográfica ou televisiva em construção.
Ao inegável sucesso de gestão da TVI - o caso a ser estudado, como quer Moniz - junta-se um retrato negro do país: com pouco sucesso (ao contrário do "bom aluno" de anos atrás), vivendo de expedientes (o concurso é um expediente, com a desvantagem de a selecção não ser aleatória como se julga, mas ser mesmo uma selecção prévia da produção do programa), com pouco dinheiro na carteira mas tendo ideias de rico. O sucesso da TVI tem uma correspondência directa no nosso insucesso colectivo.
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