Coisas e Coisas
Lágrimas
O homem com a cabeça de prata entrou pela mesma porta que todos os outros. Olhou longamente para as mesas do restaurante tentando encontrar o seu lugar. Fique a vontade, dizia o garçom, claramente constrangido. Ele, o homem com a cabeça de prata, deu meia volta e se retirou. No restaurante pôde-se perceber uma sensação geral de alívio com a sua decisão. Ele, o garçom, olhou para aquelas pessoas sentadas confortavelmente em suas mesas bem postas e, pela primeira vez na vida, lamentou trabalhar naquele lugar. Eles, os outros, continuaram comendo e conversando. Eles, os outros, agora têm conversa para uma semana. Eles, os outros, não retornarão mais àquele restaurante.
O homem com a cabeça de prata sentou em sua cama e olhou uma criança que dormia tranquilamente. Ele tentou esperar acordado você chegar, dizia a mulher, com lágrimas nos olhos. Ele, o homem com a cabeça de prata, também choraria, se pudesse. Mas elas, as cabeças de prata, não têm aparelho lacrimal. Ela, a mulher do homem com a cabeça de prata, tentou disfarçar suas lágrimas. Virou-se de costas e dobrou uma roupa qualquer que encontrou sobre a cômoda. Ela, a mulher do homem com a cabeça de prata, sabia que estava reproduzindo uma clássica cena clichê de filmes hollywoodianos. Ele, o homem com a cabeça de prata, sabia o que a mulher estava fazendo. Ele, o homem com a cabeça de prata, entendia o que estava acontecendo. Ela, a criança, dormia tranquilamente enquanto seu rosto começava a deixar transparecer os primeiros sinais de galvanização.
O homem com a cabeça de prata entrou correndo pela porta do hospital. Olhou para os lados tentando encontrar sua mulher ou alguém conhecido. Quarto 17B, dizia a enfermeira, claramente constrangida. Ele, o homem com cabeça de prata, sabia que seu filho estava machucado. Ele, o homem com a cabeça de prata, segurou a mão do filho que respirava com dificuldade. Ele, o filho do homem com a cabeça de prata, olhou o pai e tentou sorrir. Eu também não consigo mais chorar, dizia o menino. Minha cabeça já está quase toda de prata, dizia o menino. Eu já sou quase como o senhor, dizia o menino. Então eles não vão conseguir me machucar quando baterem na minha cabeça, dizia o menino. Eles nunca mais vão bater em você, dizia o homem com a cabeça de prata. Ela, a enfermeira, olhou a cena com naturalidade. Ela, a enfermeira, estava acostumada com promessas feitas em momentos como esse. Ela, a enfermeira, sabia que era melhor assim.
Um fenômeno fascinante acontece quando um deles morre, dizia o professor aos alunos da classe de nova antropologia. Ao invés de se deteriorarem como as pessoas normais, continuava o professor sem demonstrar nenhum constrangimento por estabelecer tal linha de raciocínio, eles partem-se em milhares e milhares de pedaços. Seu corpo inteiro transforma-se, quase que instantaneamente, em prata, seguia falando. Os homens com cabeça de prata não são enterrados porque seguem partindo-se até não serem mais perceptíveis aos olhos humanos, finalizou.
O homem com a cabeça de prata segurou a cabeça de sua mulher e olhou seus olhos molhados. As lágrimas escorriam pela face e molhavam a mão do homem. Essa era uma das poucas coisas que o homem com a cabeça de prata invejava do resto da humanidade.
loading...
-
Dê-lhe Sua Mão
Um homem estava atolado num pântano no norte da Pérsia. Somente a cabeça ainda estava fora do lamaçal. Com toda a força, gritou por ajuda. Logo acorreu um enorme grupo de pessoas ao lugar do infortúnio. Uma delas resolveu tentar ajudar o pobre...
-
O Medo De Transpor A Porta
Ironicamente o melhor conto de Franz Kafka não é um conto. Já no fim da obra "O Processo", no capítulo "Na Catedral", somos apresentados a uma das melhores parábolas que a literatura produziu. O relato curto é narrada por um padre que nos conta...
-
Adivinhe Quem Vem Para Rezar
O homem (Jorge Loureiro), de cerca de quarenta anos, entrou na igreja para a missa de sétimo dia do pai. Ao fim da tarde abatera-se sobre o local um grande temporal. Ainda não chegara ninguém, nem a mãe, até que entrou o velho sócio do pai. Em tempos,...
-
Salazar Vai Ao Cinema
No próximo dia 8 de Julho, a partir das 22:00, a Fábrica do Braço de Prata acolhe a projecção das edições nº1 (1938) e nº17 (1940) da série de actualidades cinematográficas de propaganda do Estado Novo Jornal Português e a apresentação da...
-
Cala A Boca, Porra!
Trilha sonora para este post: Death of you ( Remix) Gentlemen Drivers Gritei. Ele me olhou meio assustado e tentou esboçar alguma reação. Não pensei duas vezes. Tirei o revólver das costas e dei três tiros. Simples assim. Simples assim... Porra......
Coisas e Coisas