Coisas e Coisas
Homo sapiens 1900, by Peter Cohen.
A história da eugenia no século XX.Chegou às minhas mãos um filme excelente, produzido em 1998, sobre a história dos movimentos eugênicos no mundo. O filme de
Peter Cohen, "
Homo sapiens 1900" apresenta de forma impressionante como as ciências biológicas, ao longo do século XX, foram capazes de causar imensos problemas sociais ao serem mal interpretadas por políticos preconceituosos que acreditavam em idéias de eugenia e superioridade racial.
Segundo o dicionário Houaiss, a eugenia significa
eugenia:
■ substantivo feminino
Rubrica: medicina.
teoria que busca produzir uma seleção nas coletividades humanas, baseada em leis genéticas
Etimologia
lat.cien. eugenia 'aperfeiçoamento da espécie via seleção genética e controle da reprodução'; ver eu- e -genia
A obra, embora não pareça fazer nenhum julgamento ético explícito, informa como os movimentos de purificação de raças e a tentativa de criar um suposto
ser humano perfeito causaram extremas reviravoltas sociais ao longo do século XX; principalmente em países como a Alemanha, Estados Unidos, Suécia e União Soviética. Em um certo momento do filme, uma propaganda de TV na Alemanha chega a exaltar Hitler como tendo sido o primeiro grande líder da humanidade a levar a sério a ""grandiosa"" idéia da higiene racial.
Algo que achei interessante no filme vem da relação entre os ideais de melhoria da raça com a teoria da evolução lamarckiana, publicada originalmente há exatamente 200 anos, no livro que abriu o mundo para o pensamento evolucionista:
Philosophie Zoologique (Jean-Baptiste Lamarck, 1809). Os chamados
lamarckistas sociais acreditavam que as características adquiridas pelos seres humanos ao longo da vida seriam passadas para sua prole -- a teoria da herança dos caracteres adquiridos. Assim, a
engenharia social e a
educação poderiam produzir, no espaço de apenas uma geração, uma nova população de seres humanos superiores, que herdariam de seus pais a inteligência e até mesmo a etiqueta. Segundo os pregadores desta idéia, a melhoria da raça aconteceria de forma rápida e veloz se ensinássemos na escola aquilo que "deveria ser ensinado". [1]
O filme relata a ascensão do movimento eugênico na Alemanha no início do século XX -- e também na Suécia, URSS e EUA. Enquanto técnicas de
eugenia negativa eram levadas a cabo através do assassinato de bebês defeituosos ou pela esterilização de humanos "menos aptos", técnicas de
eugenia positiva tentavam reproduzir apenas aqueles indivíduos supostamente mais aptos [2]. Nos EUA, leis para a esterilização passaram em diversos estados e causaram a esterilização de um enorme número de imigrantes. Rapidamente o movimento eugênico foi deturpado por pensamentos racistas e um suposto ideal de pureza do povo nórdico era vendido na Alemanha, Suécia e URSS. Na União Soviética comunista, o pesquisador Hermann Muller tenta convencer o governo a adotar um sistema reprodutivo de castas, sendo que o governo seria responsável por fazer inseminações artificiais dos melhores indivíduos em mulheres, desmoronando a idéia de
família e sugerindo a criação de uma suposta utopia huxleyana; um
admirável mundo novo. Concursos da melhor herança, do bebê e da criança perfeitos estavam sendo feitos em todo lugar. A idéia de "
melhoria racial" era expandida entre os intelectuais e institutos para a pesquisa racial com intenções de
engenharia social são abertos em diversos lugares do mundo. Estudar-se-ia "as melhores características", criar-se-ia formas de identificá-las e realizar-se-ia uma limpeza racial daqueles que estivessem mais distantes do padrão definido. (A idéia do lamarckismo social atrapalhou em demasiado a evolução científica da Rússia na metade do século XX e geneticistas conhecem bem a história de Lysenko e a proibição da Rússia aos estudos genéticos que acontecia por esta época; um atraso científico de grandes proporções para a ciência deste país.)
Movimentos eugênicos culminaram portanto na limpeza étnica ocorrida na Alemanha nazista e, como bem se sabe, em guerras de alcance mundial. Segundo Cohen, o conhecimento de biologia que tivemos ao longo do século XX nos proporcionou uma idéia de que poderíamos controlar e modificar o processo evolutivo ""
ao nosso favor"", como se soubéssemos o que a natureza estaria por nos apresentar no futuro.
Um problema grave pensamento era que os ideais de perfeição foram atrelados a julgamentos morais de indivíduos que se pensavam melhores do que outros. Na URSS, os cérebros dos maiores intelectuais eram estudados ao tentar encontrar uma suposta matéria física para a inteligência. Enquanto na Alemanha, os ideais eugênicos estavam mais ligados à força física; não intelectual. Essa pequena discrepância nos dá indícios de que uma suposta "virtude genética" pode se apresentar de diversas formas, bastando se seu conceito de virtude estaria associado a características físicas ou mentais. E é exatamente esta
arbitrariedade de todo e qualquer sistema de privilégios que beneficie uns sobre outros que se torna também o argumento chave do filme, mostrando os horrores dos quais os humanos podem se auto-infligir em nome de ideais de "supremacia" ou a partir de nossa insistência em tentar controlar e modificar nossa própria natureza. Será o doutor Frankestein um grande gênio ou um grande vilão? Virtuoso ou desvirtuado?
A questão que hoje se tem como chave em biologia e produzida através da observação e análise cuidadosa do mundo natural, evidenciada também por estudos evolutivos realizados a partir de uma grande quantidade de espécies de animais e plantas, é que
uma espécie biológica é mais apta quanto mais diversa ela é. Assim é a diversidade que deve ser exaltada, não a reprodução de determinados tipos em detrimento a outros, mas justamente a
mistura entre as raças e entre indivíduos geneticamente diferentes. Em genética de populações e melhoramento de plantas conhece-se o chamado
vigor do híbrido, que ocorre quando um indivíduo é gerado por reprodução sexuada a partir de pais oriundos de duas linhagens diferentes. Cada linhagem pura de algum organismo biológico frequentemente acumula determinadas características deletérias e o híbrido, apresentando heterozigose de uma grande quantidade de características, apresenta de repente uma grande diversidade, mostrando-se mais vigoroso e até mais apto às constantes mudanças ambientais. Se o mundo não variasse, talvez fosse mais eficiente o desenvolvimento de linhagens de organismos, mas o mundo é altamente dinâmico e não estático como querem pregar os defensores da eugenia. Uma linhagem pura de organismos biológicos, por exemplo -- sejam eles humanos ou não -- tem muito mais chance de ser susceptível a determinadas doenças ou a uma nova variedade de agentes patogênicos. Indivíduos apresentando alta diversidade genética teem mais chance de escaparem de armadilhas pregadas por patógenos sempre a competir com o hospedeiro por energia e recursos.
Polêmico e sombrio,
1900 é definitivamente um filme a ser assistido e discutido.
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[1] Tudo isso acontecia devido à má educação científica da população em todo o mundo e pelo desconhecimento de que a herança dos caracteres adquiridos fosse uma teoria já refutada pelo evolucionista alemão August Weismann, por volta de 1890. Weismann havia cortado o rabo de milhares de ratos e verificado que nenhuma prole oriunda deles havia dado sinais de ter diminuído o tamanho do rabo. Logo, havia uma distinção entre células somáticas e germinativas e o que acontecia ao corpo do indivíduo adulto não passava para as próximas gerações. O lamarckismo enquanto herança dos caracteres adquiridos já estava morto enquanto era utilizado para o extermínio social.
O evolucionista August Weismann que foi o primeiro a refutar a teoria lamarckiana da herança dos caracteres adquiridos -- da qual até mesmo Darwin titubeava. Ele criou a teoria do germoplasma, onde havia a separação entre células somáticas e germinativas e apenas modificações nessas últimas seriam herdáveis.
[2] Foi interessante notar como a realização da eugenia positiva, ou seja, a tentativa de reprodução dos indivíduos mais aptos, chocou-se com a moral burguesa conservadora à época. Por isso, o extermínio dos menos aptos através da eugenia negativa foi realizada com mais eficácia e sem dilemas morais. A reprodução dos indivíduos mais aptos através eugenia positiva fazia com que as mulheres e homens supostamente melhores biologicamente devessem reproduzir entre si. E assim subjulgava a escolha do parceiro na reprodução e faria com que mulheres de classe alta devessem fazer sexo com indivíduos em especial para a melhoria da raça. Esse sexo para a melhoria da raça nunca deu certo e certos centros para a eugenia positiva eram habitados por moças das altas classes que haviam engravidado sem que fossem casadas... Evitar-se-ia, assim, o aborto de bebês aptos e de boa estirpe.
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