Desimportando-se com o Autor
Coisas e Coisas

Desimportando-se com o Autor


Não suporto pessoas que se surpreendem com um comentário a favor ou contra determinadas obras, pelo fato dela ser de um ou outro autor. É sempre a mesma coisa, quando critico uma obra louvada por todos, sempre vem aquele que fala: "É, mas você não pode esquecer que quem escreveu foi Fulano". E o contrário é ainda pior. Quando digo que gosto de "A Ira dos Anjos", o ouvinte abismado retruca com o comentário típico: "Sidney Sheldon? Você gosta de Sidney Sheldon?". Isso só prova que boa parte dos leitores estão acostumados a dar importância demais ao autor. Não conseguem imaginar que um escritor famoso como Machado de Assis possa ter escrito uma obra ruim. Ou não conseguem associar o nome de autor, conhecido por escrever livros comerciais ou até ruins, a uma boa história. Por causa desta mania, muitos acabam generalizando e "a maioria" se torna "todos".

Para aqueles que misturam autor e obra, gostaria que pensassem da seguinte forma: depois que uma obra é publicada o autor não serve para nada. O que ele estava pensando ao conceber a obra, seu ponto de vista a respeito de algum personagem, sua visão da história, enfim, tudo isso não servirá para nada. Tanto é assim que quando um autor faz um comentário do tipo "ninguém entendeu o real significado", eu começo a rir. O único motivo que levaria ele a dizer isso seria sua prórpia maneira de escrever, ou seja, ele está admitindo assim que escreveu mal uma obra, pois não conseguiu mostrar o "real significado". Quando o autor está escrevendo, ele tem uma oportunidade única de dizer o que pensa. Se não sair exatamente como pensou, depois de publicada a obra, não há mais nada a fazer. Somos nós leitores e não o autor, que damos significado a obra. Somos nós que direcionaremos o enfoque para uma parte ou outra, independente do que o autor achar importante. Todo o resto se tornará bobagem.

Imagine se, por exemplo, Machado de Assis concedesse um entrevista hoje afirmado que Capitu realmente traiu Bentinho e que não era seu objetivo deixar a obra ambígua. Isso iria acrescentar alguma coisa? Deixaríamos de tirar nossas próprias conclusões por causa disso? Enfim, faria alguma diferença? Ao ler uma obra ninguém quer saber qual é o ponto de vista do autor a respeito dela. Aliás, é até melhor que não saibamos. Por causa disso uma única obra gera vários pontos de vista, muitos dos quais divergentes entre si e isso não é um problema para nós leitores.

Com isso, critico muitos escritores que possuem a mania de tentar mudar aquilo que escreveram anteriormente. Revisões para melhorar a ortografia de uma obra é uma coisa. Agora rever um trecho com a justificativa de que as pessoas o consideraram um trecho ruim é um desrespeito para com o leitor. O escritor deve aprender que seu papel não é conduzir a UM entendimento de sua obra, mas apenas produzir POSSIBILIDADES de interpretação. É justamente isso que compõe uma grande obra.
Outra coisa que me irrita bastante é quando críticos ou leitores dão importância demais a vida do autor. Embora uma biografia possa servir para abrir nossos olhos e prestarmos uma atenção maior a determinados aspectos da obra do autor, muitos querem reduzir sua criatividade e condicioná-la a certos eventos. "Fulano só escreveu isso porque foi preso" ou "Essa viagem mudou sua vida e por isso produziu a obra tal", são comentários completamente sem pé nem cabeça. Se fosse assim todos os que passaram um tempo na Sibéria seriam um Dostoievsky. Criatividade não é algo que pode ser explicado simplesmente por se buscar conhecer a "psicologia" do autor, como está na moda dizer. Conduzir nossa compreensão de certa obra com base na vida do autor pode nos levar a uma interpretação tão equivocada quanto a de alguém que nunca leu nada sobre a obra.

Ver as coisas sob essa perspectiva nem sempre é simples. Somos muitas vezes induzidos a imaginar que realmente não entendemos o ponto ou não somos capazes de perceber a "beleza" de uma obra. Às vezes, por falta de referências, isso pode ser verdade. Mas para um leitor habitual, sempre vale a pena desconfiar.





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