Ironias finas, texto elegante, estilo surpreendente para a época. Tudo isso pode ser dito de um dos maiores escritores brasileiros, Machado de Assis. No entanto, poucos param para refletir sobre um dos maiores acertos do escritor: sua aposta nos leitores. Machado de Assis, antes de escrever "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Dom Casmurro", havia escrito romances que podem ser classificados como populares. O romance "Helena", por exemplo, é o típico romance-folhetim: uma personagem descrita de modo perfeito, romântico, para que o leitor já nas primeiras páginas reconheça a fórmula e siga a leitura, tal qual hoje acontece com as novelas televisivas. Nos primeiros capítulos do romance, a família de um conselheiro durante a leitura de seu testamento, surpreende-se com o reconhecimento de uma filha chamada Helena. Notem como, após a introdução dela na família, a descrição parece ser a mesma de um sem-número de heroínas dos clássicos brasileiros que lemos na juventude:
"Era uma moça de dezesseis a dezessete anos, delgada sem magreza, estatura um pouco acima de mediana, talhe elegante e atitudes modestas. A face, de um moreno-pêssego, tinha a mesma imperceptível penugem da fruta de que tirava a cor; naquela ocasião tingiam-na uns longes cor-de-rosa, a princípio mais rubros, natural efeito do abalo. As linhas puras e severas do rosto parecia que as traçara a arte religiosa. Se os cabelos, castanhos como os olhos, em vez de dispostos em duas grossas tranças lhe caíssem espalhadamente sobre os ombros, e se os próprios olhos alçassem as pupilas ao céu, disséreis um daqueles anjos adolescentes que traziam a Israel as mensagens do Senhor. Não exigiria a arte maior correção e harmonia de feições, e a sociedade bem podia contentar-se com a polidez de maneiras e a gravidade do aspecto. Uma só coisa pareceu menos aprazível ao irmão: eram os olhos, ou antes o olhar, cuja expressão de curiosidade sonsa e suspeitosa reserva foi o único senão que lhe achou, e não era pequeno."
Como era de se esperar, em "Helena" o final é perfeitamente previsível, cuidadosamente preparado para causar um impacto emocional no leitor - no caso possivelmente o público feminino. O leitor é levado até a 'crise' da mocinha e derrama lágrimas por sua morte. Tal efeito era a garantia comercial para o sucesso da publicação e, consequentemente, para um novo contrato de publicação de um novo folhetim. Viver com essa garantia de sucesso comercial era talvez tudo o que um escritor da época poderia imaginar como sucesso. Mas Machado de Assis paradoxalmente resolveu abandonar tudo isso quando começou a publicar "Memórias Póstumas de Brás Cubas". A famosa dedicação inicial da obra revela isso:
"AO VERME QUE PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES DO MEU CADÁVER DEDICO COMO SAUDOSA LEMBRANÇA ESTAS MEMÓRIAS PÓSTUMAS"
Já no título e na primeira frase da obra percebemos que Machado de Assis passou a rejeitar a idéia de que somente se se escrevesse para um público bobinho, ele poderia obter sucesso. Machado de Assis passou a apostar em outro tipo de público, um leitor mais qualificado, capaz de interpretar as ironias de seu texto e de perceber a invetividade de sua nova obra. Com um refinamento ainda maior, Machado de Assis poderia assim construir ambigüidades próprias em seu texto, que tornariam a interpretação de sua obra muito mais do que uma construção de imagens românticas. Somente essa coragem de abandonar o caminho fácil da fórmula romântica e acreditar na capacidade do leitor de evoluir, já faz de Machado de Assis um escritor a ser admirado. Daí, quando lemos "Dom Casmurro" e percebemos sua capacidade de fazer com que o leitor perceba como a voz de um narrador pode nos trair, levando-nos a um julgamento falso, vemos um escritor ímpar, que ampliou os limites da literatura, fazendo com que nós leitores, derivássemos um prazer ainda maior: o prazer de duvidar do que lemos. E talvez esta seja sua qualidade mais destacada, de acreditar no leitor mais inteligente.